A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou, sob o rito dos recursos repetitivos, os Recursos Especiais nº 2.175.767-ES e 2.175.768-ES, interpostos pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), para discutir importante controvérsia no âmbito do direito sancionador administrativo.
O julgamento irá analisar a possibilidade de aplicação retroativa da Resolução ANTT nº 5.847/2019, por ser mais benéfica ao infrator, ainda que a infração tenha sido cometida antes da sua edição.
Embora a afetação tenha se restringido formalmente à análise da Resolução ANTT nº 5.847/2019, a controvérsia envolve uma questão jurídica de maior amplitude: a possibilidade de aplicação retroativa de normas administrativas mais benéficas no processo sancionador, nos moldes do que ocorre no direito penal.
A Primeira Seção entendeu pela afetação ao rito dos repetitivos considerando: (i) a multiplicidade de causas discutindo a aplicação de normas administrativas mais favoráveis; (ii) a divergência jurisprudencial, diante de entendimentos distintos dentro do próprio STJ e nos tribunais inferiores; e (iii) a relevância jurídica do tema, pois a matéria envolve princípios constitucionais fundamentais que orientam o exercício do poder sancionador do Estado.
Inicialmente, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas do STJ propôs que a controvérsia fosse delimitada de maneira mais ampla, envolvendo a retroatividade da norma administrativa sancionadora de forma geral, sem restrição a um regulamento específico.
Contudo, prevaleceu o entendimento da maioria da Primeira Seção, seguindo o voto do ministro Paulo Sérgio Domingues, para circunscrever a controvérsia à Resolução ANTT nº 5.847/2019.
Essa opção se fundamentou em razões procedimentais, ligadas à exigência de que o tema afetado tenha aderência direta ao que foi discutido nos processos-pilotos, conforme previsto no art. 1.037, I, do Código de Processo Civil (CPC). O objetivo foi garantir a precisão do julgamento repetitivo e a segurança na suspensão dos processos afetados.
Importante destacar que, no julgamento, a ministra Maria Thereza de Assis Moura divergiu quanto à delimitação, defendendo uma abordagem mais ampla, por entender que a discussão da retroatividade da norma mais benéfica transcende o setor regulado pela ANTT e se relaciona a princípios gerais do direito sancionador administrativo.
Apesar da delimitação formal, o relator registrou que a fundamentação do futuro julgamento poderá ser aplicada a outros casos análogos, conforme a evolução jurisprudencial, o que evidencia a importância do caso para outros agentes regulados.
A afetação da controvérsia ao rito dos repetitivos ganha ainda mais relevância diante da revisão de entendimento da Primeira Turma do STJ, ocorrida no julgamento do REsp 2.103.140/ES, analisado em Informe divulgado pelo escritório em junho de 2024.
Naquela oportunidade, a 1ª Turma — que historicamente reconhecia a retroatividade da norma administrativa sancionadora mais benéfica — alterou sua posição para, com base no Tema 1.199 da Repercussão Geral do STF, adotar interpretação restritiva, exigindo previsão legal expressa para afastar a aplicação do princípio do tempus regit actum, pelo qual o ato jurídico deve ser regido pela lei vigente no momento em que foi praticado.
Essa mudança foi preocupante, pois, como destacado no Informe de junho, a decisão da 1ª Turma não enfrentou de maneira adequada a totalidade do entendimento fixado pelo STF, especialmente no que diz respeito ao princípio da não ultra-atividade de normas revogadas.
Nesse cenário, a afetação da controvérsia pela Primeira Seção do STJ representa uma oportunidade estratégica para o reexame criterioso da aplicação da retroatividade da norma mais benéfica no direito sancionador administrativo. Embora a discussão tenha sido formalmente limitada à Resolução ANTT nº 5.847/2019, o julgamento poderá estabelecer fundamentos relevantes para a aplicação em outros setores regulados, dependendo da orientação que venha a ser firmada.