Como amplamente noticiado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, em abril de 2023, importante matéria envolvendo a possibilidade de tributação, por IRPJ e CSLL, dos rendimentos oriundos de benefícios fiscais relacionados ao ICMS. O julgamento dos REsp n° 1.945.110/RS e n° 1.987.158 se deu sob o rito dos recursos repetitivos, identificado como Tema Repetitivo n°1.182, o que significa que as conclusões ali alcançadas deverão ser observadas por todos os tribunais em julgamentos futuros sobre a matéria.
A discussão é antiga e, ao longo dos anos, se desdobrou em duas linhas argumentativas principais. A primeira aponta para o desrespeito ao pacto federativo, princípio que é afrontado ao se pretender onerar, pelos tributos federais IRPJ e CSLL, rendimentos oriundos de benefícios do tributo estadual ICMS, concedidos pelos Estados no âmbito de suas próprias políticas fiscais. Essas políticas ficariam mitigadas caso se permitisse a intervenção tributária federal almejada. Essa tese foi consagrada em 2018 pelo próprio STJ, quando afastou a tributação federal especificamente sobre os benefícios de crédito presumido de ICMS, no julgamento dos EREsp n° 1.517.492/PR.
A segunda linha argumentativa se baseia na definição, contida na Lei Complementar n°160/2017, de que os benefícios fiscais de ICMS são considerados subvenção para investimento e, por ter essa natureza, não são tributáveis por IRPJ e CSLL, contanto que os requisitos legais inerentes à desoneração de subvenções para investimento sejam observados. Os requisitos, previstos no art. 30 da Lei n° 12.973/2014, basicamente, buscam garantir, por meio da constituição de reserva de lucros, que os recursos subvencionados permaneçam sob a titularidade da empresa beneficiada e não acabem distribuídos aos acionistas, por exemplo, na forma de dividendos ou devolução de capital.
Do ponto de vista prático, o que difere as duas teses é a desnecessidade de constituição da reserva de lucros prevista no art. 30 da Lei n° 12.973/2014, com a consequente observância de suas limitações legais, quando se trata da tese sobre a afronta ao pacto federativo. De outro lado, sob a sistemática da Lei Complementar n° 160/2017, é exigida a constituição da referida reserva para fins da desoneração do IRPJ e da CSLL, mas não se permite a imposição de outras exigências não previstas no art. 30 da Lei n° 12.973/2014.
Desde a divulgação do resultado do julgamento do Tema Repetitivo n° 1.182 em abril, ficou clara a posição do STJ de que a tese de afronta ao pacto federativo alcançava apenas os benefícios de crédito presumido de ICMS, deixando de abarcar outras espécies de benefícios de ICMS, como a isenção, a redução de base de cálculo e diferimentos. Esse entendimento está evidenciado na primeira tese repetitiva aprovada no julgamento: “1. Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS, – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (art. 10, da Lei Complementar n. 160/2017 e art. 30, da Lei n. 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no ERESP 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.”
Como se nota, a despeito de restringir o argumento de afronta ao pacto federativo aos benefícios de crédito presumido de ICMS, o STJ reconheceu que outras espécies de benefícios fiscais de ICMS poderiam, também, ser desoneradas dos tributos federais, contanto que respeitados os requisitos da legislação, prestigiando para as demais espécies de benefícios fiscais a linha argumentativa escorada na Lei Complementar n° 160/2017.
Sobre esse ponto, o STJ aprovou outras duas teses repetitivas, relacionadas aos critérios legais a serem observados para fins da não incidência do IRPJ e da CSLL, são elas:
“2. Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS, – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
3. Considerando que a Lei Complementar 160/2017 incluiu os §§ 4º e 5º ao art. 30 da Lei 12.973/2014 sem, entretanto, revogar o disposto no seu § 2º, a dispensa de comprovação prévia, pela empresa, de que a subvenção fiscal foi concedida como medida de estímulo à implantação ou expansão do empreendimento econômico não obsta a Receita Federal de proceder ao lançamento do IRPJ e da CSSL se, em procedimento fiscalizatório, for verificado que os valores oriundos do benefício fiscal foram utilizados para finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico.”
É justamente sobre a questão relacionada à amplitude dos requisitos legais que permitiriam a desoneração do IRPJ e da CSLL incidentes sobre rendimentos oriundos dos benefícios fiscais de ICMS, diversos do crédito presumido, que pairavam, ainda, dúvidas e potenciais conflitos interpretativos entre contribuintes e autoridades fiscais federais.
Isso porque, apesar das alterações promovidas pela Lei Complementar n° 160/2017, determinando que os benefícios de ICMS de qualquer espécie são subvenções para investimento para fins da desoneração de IRPJ e CSLL, as autoridades federais têm insistido em seu tradicional entendimento de que a desoneração dos tributos federais alcançaria apenas as subvenções aplicadas na implantação ou expansão de empreendimento econômico. Com isso, dava-se abertura a uma miríade de outras discussões relacionadas à comprovação da implantação/expansão, à contemporaneidade e vinculação dos investimentos e subvenções, dentre outras. Esse entendimento foi manifestado pela Receita Federal do Brasil na Solução de Consulta Cosit n°145/2020 e reedita posição clássica do órgão indicada no Parecer Normativo CST n° 112/1978.
Diante deste cenário, a tese repetitiva de número 3, ao permitir a fiscalização da destinação dos valores oriundos dos benefícios fiscais, possibilitaria, na visão de alguns, que a fiscalização cobrasse IRPJ e CSLL que deixaram de ser pagos, com inclusão de multas e juros, caso se observasse que a destinação dos recursos do benefício fosse estranha à viabilidade do empreendimento econômico. A ausência de maior detalhamento dos fundamentos da decisão permitiu elucubrações de que o requisito da implantação/ampliação do empreendimento econômico permanecia, mesmo que os termos “viabilidade do empreendimento” empregados na tese acima já afastasse esse entendimento.
Logo após a divulgação do resultado do julgamento do Tema Repetitivo n°1.182 em abril de 2023, foram veiculadas manifestações de representantes do governo federal no sentido de que a decisão do STJ teria sido totalmente alinhada com as pretensões das autoridades fiscalizatórias federais, o que, inclusive, representaria grande influxo de recursos aos cofres federais, incrementando receitas em momento de delicada discussão política sobre a aprovação de novo arcabouço fiscal e a capacidade financeira do governo central.
Com a divulgação do acordão, em 12 de junho deste ano, o alcance dos requisitos legais a serem observados para a desoneração de IRPJ e CSLL sobre os benefícios de ICMS parece ter sido estabelecido com precisão.
Como era de se esperar, o STJ não ignorou as alterações implementadas pela Lei Complementar n° 160/2017, deixando claro que, os benefícios fiscais de ICMS, diversos do crédito presumido, escapam ao IRPJ e à CSLL desde que cumpridos os requisitos do art. 30 da Lei n° 12.973/2014 e suas consequências, que envolvem, basicamente, a constituição de reserva de lucro e a não distribuição aos acionistas, afastando-se requisitos relacionados à implantação ou expansão de empreendimento. Esse racional fica claro no trecho do voto do relator, ministro Benedito Gonçalvez:
“Diante disso, na linha do entendimento já firmado pela Segunda Turma, há a necessidade de registro em reserva de lucros e limitações correspondentes, nos termos da Lei, muito embora não se possa exigir a comprovação de que os incentivos o foram estabelecidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.”
O ministro Hernam Bejamim foi além e destacou que a Lei Complementar n° 160/2017, ao definir os benefícios fiscais de ICMS como subvenção para investimento, buscou afastar a exigência de comprovação da aplicação dos recursos subvencionados na ampliação ou implementação do empreendimento econômico, defendida pela fiscalização, citando o seguinte trecho do Parecer da Comissão de Finanças e Tributação emitido durante a tramitação do projeto da referida lei complementar:
“Além disso, acolhemos ideia do nobre Deputado Luiz Carlos Hauly e incluímos artigos que deixam claro que os incentivos e benefícios fiscais de ICMS recebidos pelas pessoas jurídicas, desde que esses valores sejam mantidos em conta de reserva no Patrimônio Líquido, são subvenções para investimentos, sobre eles não incidindo, por consequência, IRPJ e CSLL. Impede-se, com isso, que a Secretaria da Receita Federal do Brasil continue a autuar as empresas beneficiárias de incentivos de ICMS com base em interpretações equivocadas, reforçando a segurança jurídica e garantindo a viabilidade econômica dos empreendimentos realizados.”
Nota-se, inclusive, que deste trecho se extrai a expressão ‘garantia da viabilidade do empreendimento econômico’ inserida na tese repetitiva de número 3 aprovada pelo STJ, cuja finalidade é garantir que os recursos subvencionados sejam mantidos sob titularidade da empresa, em reserva de lucros, impedindo sua distribuição aos acionistas. A expressão não denota a exigência de comprovação da aplicação do recurso na ampliação ou implementação de empreendimento econômico, como fora ventilado.
Ainda que os trechos transcritos acima, além de outros ao longo dos votos dos ministros, evidenciem o entendimento do STJ sobre os requisitos para a não incidência do IRPJ e da CSLL sobre os benefícios de ICMS, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), no dia da publicação acórdão, divulgou nota para defender, uma vez mais, que “O valor correspondente ao benefício deve ter registro na reserva da empresa e posteriormente ser reinvestido na expansão ou implantação de empreendimento”.
Novamente, o entendimento manifestado pelo órgão não é condizente com as decisões dos tribunais, em especial com as teses repetitivas aprovadas pelo STJ, incentivando potenciais conflitos interpretativos e gerando insegurança jurídica sobre tema, enfim, resolvido pela corte superior. A decisão recém-publicada pelo STJ ainda não é definitiva, podendo ser objeto de ajustes que a deixem mais clara, no entanto, a análise das razões expostas pelos ministros deixa pouca margem para dúvidas quanto à posição do órgão sobre o tema.
Em conclusão, com a publicação do acórdão do Tema Repetitivo n° 1.182 pelo STJ, em 12 de junho, ficou claro o entendimento daquele tribunal quanto à não incidência do IRPJ e da CSLL sobre rendimentos oriundos dos benefícios fiscais de ICMS, definindo-se os respectivos critérios. Em relação ao benefício de crédito presumido de ICMS, especificamente, não haverá incidência dos tributos federais, independentemente de quaisquer requisitos legais. Em relação às demais espécies de benefícios fiscais de ICMS, não haverá incidência de IRPJ e CSLL, contanto que os critérios legais previstos no art. 30 da Lei n° 12.973/2014 sejam observados, notadamente, a constituição da reserva de lucros, com a consequente limitação de distribuição dos recursos aos acionistas, porém sem que se exija a comprovação da aplicação na ampliação ou implantação de empreendimento, ou outros requisitos historicamente impostos pelas autoridades fiscais federais.