Infraestrutura

Relicitação de contratos de parcerias: avaliação das diretrizes do tribunal de contas da união e da portaria nº 848/2023 do ministério dos transportes

Ana Luísa Diniz Silva [1]

Luis Gustavo Miranda [2]

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado desafios significativos nos setores ligados à infraestrutura, que desempenha um papel relevante no desenvolvimento econômico e social do país. Com a recente mudança no governo federal e a elevada demanda por melhorias na infraestrutura nacional, o instituto da relicitação tem sido objeto de reavaliação em relação à sua interpretação e ao cumprimento de sua finalidade.

A relicitação surgiu no arcabouço jurídico brasileiro com a promulgação da Medida Provisória nº 752/2016, posteriormente convertida na Lei nº 13.448/2017, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a extinção consensual de contratos de parcerias no âmbito do setor de infraestrutura de transportes em nível federal, abrangendo os modais de aeroportos, ferrovias e rodovias.

A criação desse mecanismo surgiu como resposta à imperiosa necessidade de apresentar uma alternativa aos procedimentos tradicionais de extinção contratual delineados pela Lei nº. 8.987/1995, que regulamenta as concessões públicas. As abordagens tradicionais para a extinção de contratos de concessão se mostraram ineficazes em lidar com a complexidade dos problemas relacionados aos projetos de infraestrutura, carecendo de agilidade e flexibilidade necessárias para enfrentar os desafios do setor de maneira eficiente.

Embora tenha sido criado com o objetivo de ser um procedimento mais ágil do que a extinção contratual por caducidade, o primeiro processo de relicitação no país só foi finalizado em 2023, embora o instrumento tenha sido introduzido no Brasil em 2016. A extensão no tempo e a complexidade burocrática envolvida no procedimento tornam-se um desafio significativo para alcançar os objetivos propostos, o que suscitou uma análise recente sobre a viabilidade de encerramento do processo de relicitação.

Sob tal prisma, o presente artigo se propõe a realizar uma análise aprofundada da relicitação de contratos de parcerias, com foco no contexto histórico de sua origem, na legislação pertinente e, sobretudo, nas tendências interpretativas desse instituto, à luz das orientações adotadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Ministério dos Transportes.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foi feita uma ampla revisão bibliográfica sobre o tema para se obter o estado da arte, tendo sido utilizada a metodologia teórico-jurídica com raciocínio dedutivo para a apresentação do problema. Além disso, procedeu-se a uma avaliação qualitativa da legislação brasileira relacionada ao assunto em questão.

2. RELICITAÇÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO: UMA ALTERNATIVA AOS PROCEDIMENTOS TRADICIONAIS DE EXTINÇÃO DO CONTRATO

A disponibilidade de serviços de infraestrutura é um dos fatores relevantes para o avanço econômico, social e cultural de um país. Além de contribuir para a redução das disparidades sociais e regionais, a infraestrutura adequada é capaz de proporcionar o crescimento econômico, da produtividade e da competitividade, haja vista que reduz os custos das empresas e aumenta a capacidade de fornecimento e circulação de produtos e serviços. Nesse contexto, o investimento em infraestrutura é um importante instrumento de política pública.[3]

De acordo com Rocha e Ribeiro,[4] entre as décadas de 1950 e 1970, o Brasil elevou suas taxas de crescimento ao investir em infraesetrutura, tendo sido o setor público o principal planejador, financiador e executor de obras, tanto de forma direta como indireta, por meio das empresas estatais. Lado outro, os investimentos privados correspondiam a parcela muito pequena dos investimentos totais. Tal crescimento não se refletiu na década de 1980, época em que houve um sucateamento dos investimentos públicos e privados no setor da infraestrutura.

Um novo modelo começou a ser desenhado para o setor nos anos 1990, o qual incentiva uma maior participação do setor privado na área, devido a basicamente três fatores decisivos: (i) a aprovação da Lei nº 8.987/1995 (Lei das Concessões); (ii) as privatizações das empresas distribuidoras de energia elétrica e do setor de comunicações; (iii) as primeiras concessões de rodovias federais[5]. O mencionado modelo ganhou ainda mais força a partir dos anos 2000, haja vista que foram promulgados importantes marcos legais do setor de infraestrutura, tal como a Lei nº 11.079/2004, conhecida como Lei de Parceria Público-Privada.

Portanto, a partir da década de 1990, o Brasil deu início a um extenso processo de transformação em setores de infraestrutura, visando a criação de um Estado mais ágil, competitivo e eficiente, por intermédio da privatização de ativos e da concessão de serviços públicos em diversas frentes. Nesse período, o país passou da condição de provedor direto de serviços públicos para se tornar um Estado regulador.[6]

No âmbito do modal rodoviário, o Programa de Concessões de Rodovias Federais (Procrofe) teve seu início marcado por cinco concessões de trechos de rodovias realizadas de 1994 a 1998, conhecidas como a 1ª etapa desse programa[7].

Nesse contexto, é relevante notar que concessões de ativos significativos, como as rodovias federais, foram efetuadas antes mesmo da promulgação da Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995) e da criação da agência reguladora setorial. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) só foi estabelecida após a aprovação da Lei 10.233, de 5 de junho de 2001. Em retrospecto, um planejamento adequado teria envolvido, primeiramente, o estabelecimento de um órgão regulador, seguido pela formulação de um marco regulatório robusto e, somente depois dessas etapas, a realização de concessões de serviços públicos.[8]

Vários fatores contribuíram para a viabilização de contratos de parceria[9] que se mostraram insustentáveis, tais como: (i) a urgência demonstrada pelo poder concedente em promover as concessões; (ii) as divergências entre os prazos para a realização de estudos técnicos, modelagem e as pressões políticas; (iii) a ausência de base logística robusta de planejamento; (iv) a formulação de editais e contratos com uma matriz de riscos ainda incipiente; (v) propostas agressivas por parte dos licitantes; (vi) dificuldades na obtenção de financiamento; (vii) queda na demanda. Tais condições contribuíram para que vários projetos apresentassem desafios já nos primeiros anos de execução contratual.[10]

Além dos problemas advindos de falhas na estruturação dos projetos de infraestrutura, tais parcerias são instrumentalizadas em contratos de longo prazo com consideráveis montantes de investimento, os quais, somente por esses motivos, já enfrentam várias incertezas. Em situações em que uma ou mais dessas incertezas se materializam e se convertem em riscos, as concessionárias podem não conseguir recuperar os investimentos feitos e atingir a taxa de retorno planejada, o que pode resultar na antecipação da devolução dos projetos.[11]

Face ao cenário adverso e buscando resolver os contratos de parceria problemáticos, o instituto da relicitação de contratos de parceria foi incorporado à legislação brasileira por intermédio da Medida Provisória nº 752, datada de 24 de novembro de 2016, posteriormente convertida na Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017. Tal lei, no entanto, só veio a ser regulamentada anos depois, mais precisamente no dia 06 de julho de 2019, quando da publicação do Decreto nº 9.957.

A relicitação foi concebida com a finalidade de oferecer uma solução consensual para encerrar contratos de parceria nos setores de transporte rodoviário, ferroviário e aeroportuário, que estavam sob a competência da administração pública federal.

Conforme a justificativa apresentada na Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 752/2016, o objetivo primordial da relicitação era resolver problemas históricos e desafios significativos em setores essenciais da infraestrutura, de modo a criar condições para sanear contratos de concessão vigentes, nos quais a continuidade da prestação do serviço pelas concessionárias mostrava-se inviável.

O instituto, portanto, surgiu como uma alternativa inovadora para a devolução consensual e coordenada dos contratos de concessão, de modo a evitar o processo de caducidade que, muitas vezes, é moroso e marcado por longas disputas judiciais, no qual os principais penalizados são os usuários. Assim, com a criação do instituto da relicitação, apresentou-se à iniciativa privada uma alternativa menos custosa para encerrar o contrato, com a possibilidade de receber uma compensação pelos investimentos realizados que ainda não foram depreciados e amortizados.[12]

No âmbito rodoviário federal, até agosto de 2022, sete projetos de concessão[13] não haviam prosperado, motivo pelo quais as concessionárias apresentaram pleitos de devolução das rodovias ao governo por meio do instrumento da relicitação. Antes da criação desse instrumento, um oitavo projeto[14] havia sido encerrado por caducidade.[15]

Conforme Plotkowski e Igrejas[16], a flexibilidade proporcionada pelo instituto da relicitação é benéfica tanto para o setor privado quanto para o poder concedente, já que pode ocasionar uma solução mais efetiva, célere e menos custosa do que a caducidade, em casos de descumprimento contratual. Advertem os autores que a preservação de descumprimentos contratuais e baixos níveis de serviços acarretam efeitos socioeconômicos adversos.

Outrossim, embora a relicitação seja considerada potencialmente mais ágil e eficaz do que a caducidade, é importante observar que essas supostas vantagens ainda carecem de confirmação[17].

Nesse contexto, até o presente momento, apenas um processo de relicitação foi efetivamente concluído e, ainda assim, somente no ano de 2023. Trata-se do contrato de concessão do Aeroporto de São Gonçalo do Amarante (ASGA), assinado em 12 de setembro de 2023. O aeroporto foi arrematado em leilão realizado em 19 de maio de 2023 por R$ 320 milhões[18].

A demora na implementação do instituto na prática evidencia uma situação preocupante, tendo em vista que muitos contratos de parcerias ainda vigentes, que buscaram a relicitação, têm demonstrado um desempenho consideravelmente aquém do que foi originalmente esperado.

3. REGULAMENTAÇÃO E DESAFIOS DA RELICITAÇÃO

A Lei nº 13.448, publicada no Diário Oficial da União em 6 de junho de 2017, estabelece diretrizes gerais para a relicitação dos contratos de parcerias nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, que estão sob a competência da administração federal. Além da relicitação, essa legislação também contempla disposições relativas à prorrogação de contratos de parceria. A despeito da relevância do assunto, por motivos metodológicos, a extensão dos contratos de parcerias não será tratada neste estudo.

O diploma legal em questão tem como finalidade efetivar as diretrizes traçadas pelo Programa de Parcerias para Investimentos (PPI)[19], criado no âmbito da Presidência da República, por intermédio da Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, que se destina à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada. À vista disso, o instituto da relicitação contempla, exclusivamente, empreendimentos qualificados para esse fim no PPI.

No que concerne à relicitação, o art. 4º, inciso III, da Lei nº 13.448/2017 a define como o “procedimento que compreende a extinção amigável do contrato de parceria e a celebração de novo ajuste negocial para o empreendimento, em novas condições contratuais e com novos contratados, mediante licitação promovida para esse fim”.

Sob tal esteira, a relicitação é um processo pelo qual um contrato de parceria vigente é encerrado antecipadamente e colocado novamente em licitação para seleção de um novo parceiro privado, visando a assegurar a continuidade do serviço prestado à população.

A lei em questão foi instituída com o propósito de facilitar a extinção dos contratos de concessão em situações nas quais as disposições contratuais não estejam sendo cumpridas ou cujas concessionárias demonstrem incapacidade de adimplir suas obrigações contratuais ou financeiras, devendo ser avaliada a pertinência da relicitação, caso a caso, pelo poder concedente.[20]

Nesse contexto, a relicitação se revela como uma ferramenta que pode ser eficaz para a extinção amigável dos contratos de parceria, promovendo a harmonização de interesses e evitando a adoção de medidas extremas, como a declaração de caducidade e a interrupção abrupta dos serviços públicos concedidos. Em caso de relicitação, a concessionária permanece encarregada da prestação dos serviços até a realização de um novo processo licitatório, recebendo a devida indenização quando da devolução do objeto.

A relicitação do contrato de parceria é condicionada à celebração de termo aditivo com o atual contratado, do qual constarão, entre outros elementos julgados pertinentes pelo órgão ou pela entidade competente: (i) a aderência irrevogável e irretratável do atual contratado à relicitação do empreendimento e à posterior extinção amigável do ajuste originário; (ii) a suspensão das obrigações de investimento vincendas a partir da celebração do termo aditivo e as condições mínimas em que os serviços deverão continuar sendo prestados pelo atual contratado até a assinatura do novo contrato de parceria, garantindo-se, em qualquer caso, a continuidade e a segurança dos serviços essenciais relacionados ao empreendimento; (iii) o compromisso arbitral entre as partes, com previsão de submissão, à arbitragem ou a outro mecanismo privado de resolução de conflitos admitido na legislação aplicável, das questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente.

Além disso, o pagamento da indenização ao anterior contratado é condição para o início do novo contrato de parceria, sendo que o procedimento de cálculo desse montante e sua conferência não obstam o futuro processo licitatório.

Posteriormente, a Lei nº 13.448/2017 foi regulamentada pelo Decreto nº 9.957/2019, o qual detalha os procedimentos, critérios e requisitos para a relicitação dos contratos[21].

Desde a sua criação, a relicitação vem sendo objeto de aprimoramentos e regulamentações, tendo sido concebida como uma solução extrema para enfrentar dificuldades estruturais em certos contratos[22]. Conforme Marçal Justen Filho e Cesar Pereira[23], trata-se de uma exceção, com a finalidade de resolver, de modo organizado, o imbróglio gerado por concessões que se tornaram inviáveis, haja vista que manter a concessão, em regra, é a melhor solução.

Embora a abordagem legislativa inicialmente pareça promissora para lidar com concessões problemáticas, na prática, enfrentam-se desafios substanciais ao avançar com os processos de relicitação e ao encontrar novas empresas dispostas a assumir essas concessões. Essa complexidade se deve, em parte, aos rigorosos requisitos legais e regulatórios estabelecidos pelo Decreto nº 9.957/2019, os quais acabaram tornando o processo moroso e burocrático. Logo, não obstante a grande adesão de projetos à relicitação, a demora na sua conclusão tem levantado dúvidas quanto à efetividade desse instrumento.

Um exemplo notório da lentidão desse processo é que o contrato de relicitação do ASGA, primeira do país, que teve início em 5 de março de 2020 e somente foi assinado no dia 12 de setembro de 2023[24].

Constata-se, portanto, que as relicitações não estão sendo efetivas em garantir uma solução rápida para os contratos de concessão problemáticos, o que levou o TCU e o governo federal a analisarem a temática, conforme será demonstrado nos próximos tópicos deste trabalho.

4. ANÁLISE DO ACÓRDÃO Nº 1593/2023 DO TCU E A POSSIBILIDADE DE ENCERRAMENTO DO PROCEDIMENTO DE RELICITAÇÃO

Conforme já exposto ao longo deste estudo, o instituto da relicitação não tem demonstrado, na prática, ser um procedimento mais célere em comparação com as formas tradicionais de extinção dos contratos de parceria. Por esse motivo, o governo federal vem sinalizando sua intenção de tentar preservar os contratos de concessão vigentes em vez de prosseguir com os processos de relicitação, caso haja interesse da concessionária em continuar prestando os serviços públicos.

Neste sentido, no dia 2 de agosto de 2023, o Tribunal de Contas da União respondeu a uma consulta relacionada à interpretação da Lei nº 13.448/2017, por intermédio do Acórdão nº 1593/2023, proferido pelo Plenário[25]. A consulta, apresentada pelos ministros de Portos e Aeroportos e dos Transportes, abordou a possibilidade de revogação do processo de relicitação por iniciativa do poder concedente, além de questionar as diretrizes técnicas que o gestor deve seguir para realizar esse procedimento e para renegociar o contrato em vigor[26].

O TCU, por unanimidade, determinou que a revogação do termo aditivo de relicitação depende de um acordo mútuo entre as partes. Ou seja, a Administração Pública não pode unilateralmente impor a concessionária a continuidade da concessão nas condições anteriores. Entretanto, se houver consenso entre as partes, é viável acordar a desistência da relicitação[27].

O acórdão supramencionado estabeleceu que o encerramento do processo de relicitação, por acordo de vontade entre as partes, está condicionado ao cumprimento de várias medidas. Dentre elas, incluem-se as seguintes, sem prejuízo do cumprimento dos outros requisitos determinados no acórdão: (1) a concessionária não pode ter descumprido Termos de Ajustamento de Condutas firmados com o poder concedente; (2) é necessário que a contratada manifeste formalmente seu interesse em continuar prestando o serviço público abrangido pelo contrato de concessão; (3) deve ser demonstrado o interesse público e a aderência ao princípio da legalidade; (4) deverá ser formalizado um novo termo aditivo, em substituição ao termo aditivo de relicitação; (5) deverão ser realizados estudos para demonstrar o caráter vantajoso de celebrar um novo termo aditivo de readaptação do contrato de concessão vigente em vez de prosseguir com o processo de relicitação; (7) deverá ser demonstrada a capacidade econômico-financeira da concessionária originária para adimplir todas as obrigações decorrentes do novo termo aditivo ao contrato de concessão vigente; (8) deve ser incorporada ao novo termo aditivo uma cláusula de renúncia, a qual se aplica à concessionária, impedindo a rediscussão de controvérsias anteriores, bem como uma cláusula de impedimento, que proíbe a concessionária de requerer um novo processo de relicitação; (9) encaminhamento ao TCU dos estudos sobre o caráter vantajoso da solução e do novo termo aditivo ao contrato de concessão[28].

Convém pontuar que o TCU, em resposta à consulta, expressamente pontuou que deverá ser demonstrado que o encerramento do processo de relicitação é mais eficaz que a transferência do ativo para uma nova concessionária que goze de higidez econômico-financeira.

Dentro desse enfoque, o encerramento da relicitação se apresenta como uma estratégia viável para a manutenção dos contratos de concessão existentes. No entanto, como visto, a escolha por essa alternativa demanda uma análise minuciosa das circunstâncias específicas, a consideração cuidadosa do interesse público em questão e a estrita observância dos critérios delimitados pelo TCU. O objetivo fundamental da desistência da relicitação é garantir não apenas a continuidade, mas também a otimização da prestação de serviços públicos.

Face ao exposto, após o início do processo de devolução e relicitação, não há impedimento para que o poder concedente realize uma avaliação completa das circunstâncias que possa levar à conclusão de que uma solução consensual é preferível à rescisão antecipada da concessão[29]. Essa decisão pode ser influenciada pela identificação de problemas de diversas naturezas, como a possibilidade de elevadas indenizações à concessionária, a restrição do número de licitantes devido à exclusão dessa mesma concessionária, bem como os custos e desafios inerentes a um processo de licitação complexo[30].

O poder concedente possui a responsabilidade de escolher a solução que melhor se alinha com os interesses públicos subjacentes à concessão. À medida que os eventos se desenrolam, pode se tornar evidente que a alternativa mais vantajosa é encerrar o processo de relicitação e realizar ajustes nas condições contratuais para superar as questões anteriores.

5. PORTARIA Nº 848/2023 DO MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES E A READEQUAÇÃO DE CONTRATOS DE CONCESSÃO RODOVIÁRIA

Com base na influência direta do recente Acórdão nº 1593/2023, proferido pelo Tribunal de Contas da União, o Ministério dos Transportes publicou, no dia 28 de agosto de 2023, a Portaria nº 848, a qual estabelece a política pública e os procedimentos relativos à readaptação e otimização dos contratos de concessão relacionados à exploração da infraestrutura de transporte rodoviário federal[31].

Em consonância com as diretrizes estabelecidas pelo TCU, a Portaria nº 848 regulamenta os procedimentos que as concessionárias devem seguir caso desejem iniciar o processo de readaptação de contratos de concessão vigentes que exploram a infraestrutura de transporte rodoviário no âmbito federal[32].

Os principais objetivos dessa nova política pública incluem garantir a viabilidade técnica, econômica e jurídica dos empreendimentos, bem como promover a realização, em um prazo reduzido, de investimentos destinados a melhorar a trafegabilidade e a fluidez segura das rodovias, com a melhoria da capacidade do nível de serviço e modicidade tarifária[33].

Para atingir esses objetivos, as concessionárias devem apresentar estudos que demonstrem a vantagem de celebrar termos aditivos para a readequação e otimização dos contratos de concessão. Além disso, para a renovação dos contratos, diversas medidas devem ser cumpridas pelas concessionárias, incluindo, entre outros requisitos: (i) a renúncia a todos os processos judiciais, administrativos e arbitrais em curso; (ii) o início imediato de obras; (iii) a antecipação do cronograma de execução de obras; (iv) a definição de tarifas de pedágio inferiores às previstas nos estudos em andamento ou à média dos estudos já submetidos a audiência pública.

A análise dos procedimentos para a adaptação e otimização dos contratos de concessão será realizada em ordem cronológica de protocolo, considerando a quantidade de processos em andamento e a capacidade operacional disponível do Ministério dos Transportes, da Infra S.A. e da ANTT para gerenciar esses processos. Destaca-se que a portaria entrou em vigor em 1º de setembro de 2023 e tem validade até 31 de dezembro de 2023.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho se dedicou à análise da relicitação, a qual surgiu como uma resposta às inúmeras dificuldades enfrentadas por contratos de parceria com problemas. Uma série de fatores contribuiu para a inviabilidade desses contratos, incluindo propostas agressivas por parte dos licitantes vencedores, dificuldades na obtenção de financiamento e a queda na demanda, resultando em cenários de inexecução contratual significativa.

A relicitação se apresenta como uma alternativa que pode ser mais ágil e flexível em comparação aos mecanismos tradicionais de rescisão antecipada de contratos de concessão, como a caducidade, que é aplicável nos casos de inexecução total ou parcial dos compromissos contratuais. No entanto, a implementação da relicitação enfrenta diversos desafios e complexidades.

A demora na regulamentação da Lei nº 13.448/2017, a complexidade das negociações e a necessidade de equilibrar os interesses das partes envolvidas têm contribuído para a lentidão do processo de relicitação.

Nesse contexto, o Acórdão nº 1593/2023, do TCU, desempenhou um papel relevante na orientação das políticas públicas relacionadas aos contratos de concessão em processo de relicitação. Ao autorizar a renegociação de contratos e a possibilidade de encerramento da relicitação, o TCU demonstrou sensibilidade à complexidade das situações enfrentadas pelos projetos de infraestrutura e à necessidade de equilibrar os interesses públicos e privados.

Dentro desse enfoque, a revogação da relicitação se apresenta como uma estratégia viável para a manutenção dos contratos de concessão existentes. No entanto, como visto, a escolha por essa alternativa demanda uma análise minuciosa das circunstâncias específicas, a consideração cuidadosa do interesse público em questão e a estrita observância dos critérios delimitados pelo TCU. O objetivo fundamental da desistência da relicitação é garantir não apenas a continuidade, mas também a otimização da prestação de serviços públicos.

Portanto, após o início do processo de devolução e relicitação, o poder concedente tem a flexibilidade de considerar uma solução consensual como preferível à rescisão antecipada da concessão, dependendo das circunstâncias. Isso pode ser motivado por diversos fatores, como a possibilidade de altas indenizações à concessionária, restrições à participação de licitantes devido à exclusão da concessionária originária e os desafios de um processo de licitação complexo. A responsabilidade do poder concedente é escolher a opção que melhor atenda aos interesses públicos subjacentes à concessão, adaptando as condições contratuais conforme necessário para superar desafios anteriores.

Finalmente, é importante ressaltar que, embora a relicitação tenha sido criada para possibilitar a resolução de problemas em contratos de concessão, sua aplicação eficiente e eficaz requer a superação de obstáculos consideráveis. A necessidade de maior agilidade e simplicidade no processo são desafios que devem ser abordados para que a relicitação continue a desempenhar um papel fundamental na gestão de concessões públicas. Neste cenário em constante evolução, é fundamental que as políticas públicas e a regulamentação acompanhem a dinâmica do setor, garantindo a eficácia e a sustentabilidade dos contratos de parceria no Brasil.


[1] Mestra em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Especialista em Direito Público pela Faculdade Arnaldo. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário Newton Paiva. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

[2] Doutor em Direito Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Mestre em Administração de Empresas pela FEAD. Pós-Graduado em Direito da Economia e de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.

[3] ROCHA, Igor Lopes; RIBEIRO, Rafael Saulo Marques Ribeiro. Infraestrutura no Brasil: contexto histórico e principais desafios. In:Mauro Santos Silva. (org.). Concessões e parcerias público-privadas: políticas públicas para provisão de infraestrutura. 1 ed. Brasília: IPEA, 2022, p. 23. Disponível em: http://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-040-0. Acesso em: 23 nov. 2023.

[4] Idem.

[5] ROCHA, Igor Lopes; RIBEIRO, Rafael Saulo Marques Ribeiro. Infraestrutura no Brasil: contexto histórico e principais desafios. In: Mauro Santos Silva. (org.). Concessões e parcerias público-privadas: políticas públicas para provisão de infraestrutura. 1 ed. Brasília: IPEA, 2022, p. 23. Disponível em: http://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-040-0. Acesso em: 23 nov. 2023.

[6] VASCONCELOS, Adalberto Santos de. Relicitação: comentários sobre a Lei 13.448 de 2017. Agência Infra, Brasília, DF, 9 mai. 2021. Disponível em: https://www.agenciainfra.com/blog/relicitacao-comentarios-sobre-a-lei-13-448-de-2017/. Acesso em: 23 nov. 2023.

[7] SOUZA, Luiz Fernando Ururahy de. A relicitação aplicada aos atuais contratos de concessões de rodovias federais. 2023. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Controle da Desestatização e da Regulação) – Instituto Serzedello Corrêa, Escola Superior do Tribunal de Contas da União, Brasília, Distrito Federal, 2023. p. 14.

[8] VASCONCELOS, Adalberto Santos de. Relicitação: comentários sobre a Lei 13.448 de 2017. Agência Infra, Brasília, DF, 9 mai. 2021.

[9] O presente trabalho considera a definição de contratos de parceria dada pela Lei nº 13.334/2016. Nos termos do art. 2º, § 2º, desta lei: “Para os fins desta Lei, consideram-se contratos de parceria a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante” .

[10] Ibid.

[11] PLOTKOWSKI, Fabio Maciel; IGREJAS, Rafael. A flexibilidade de abandono em concessões de infraestrutura de transporte: um estudo de caso em rodovias no Brasil. Revista do BNDES, v. 29, p. 296-352, 2023.

[12] PLOTKOWSKI, Fabio Maciel; IGREJAS, Rafael. A flexibilidade de abandono em concessões de infraestrutura de transporte: um estudo de caso em rodovias no Brasil. Revista do BNDES, v. 29, p. 296-352, 2023. p. 305

[13] Os projetos de concessão com processos de relicitação no setor rodoviário, até julho de 2022, são Via O40, MS VIA, Concebra, Autopista Fluminense, Rota do Oeste, Rodovia do Aço e ECO 101. Idem, p. 315. “No setor rodoviário, dos sete projetos, quatro estão com termos aditivos já firmados entre concessionária e poder concedente  (Via 040 [BR-040/DF/GO/MG]; MS Via [BR-163/MS]; Concessionária das Rodovias Centrais do Brasil [Concebra] [BR-060/153/262  DF/GO/MG]; e Autopista Fluminense [BR-101/RJ]); um teve  requerimento de relicitação aprovado pela ANTT, mas encontra-se  em análise pelo Minfra (Rota do Oeste [BR-163/MT]); e dois estão com pedido em análise pela ANTT (Rodovia do Aço [BR-393/RJ] e ECO101 [BR-101-ES/BA])”. (Ibid., p. 314)

[14] Foi publicado Decreto de Caducidade por inexecução contratual da concessão da BR-153 em agosto de 2017.

OLIVEIRA, C. Z. A. C. Contratos administrativos complexos e de longo prazo: a prorrogação antecipada e a relicitação na teoria dos contratos públicos. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2018.

[15] PLOTKOWSKI, Fabio Maciel; IGREJAS, Rafael. A flexibilidade de abandono em concessões de infraestrutura de transporte: um estudo de caso em rodovias no Brasil. Revista do BNDES, v. 29, p. 296-352, 2023. p. 304.

[16] Ibid., p. 310.

[17] SOUZA, Luiz Fernando Ururahy de. A relicitação aplicada aos atuais contratos de concessões de rodovias federais. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Controle da Desestatização e da Regulação) – Instituto Serzedello Corrêa, Escola Superior do Tribunal de Contas da União, Brasília, Distrito Federal, 2023. p. 17.

[18] LICHMANN, Wesley. Assinado o novo contrato de concessão do aeroporto de São Gonçalo do Amarante. Uol, 13 set. 2023. Disponível em: https://aeromagazine.uol.com.br/artigo/assinado-o-novo-contrato-de-concessao-do-aeroporto-de-sao-goncalo-do-amarante.html. Acesso em: 23 nov. 2023.

[19] Em breve digressão, o PPI foi instituído pelo Poder Executivo por intermédio da Medida Provisória nº 727/2016, posteriormente convertida na Lei nº 13.334/2016, com a finalidade de fortalecer e ampliar a cooperação entre o Estado e o setor privado, por meio da melhoria da governança e da estruturação de investimentos em projetos públicos que são regidos por contratos de parceria.

VALADARES, Ana Carolina Alhadas. Gênero e espécie: os diferentes contratos de parceria e as formas de controle pelo Tribunal de Contas Da União. In: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; CARVALHO, Luciani Coimbra de; SANTIN, Janaína Rigo (coord.). Direito administrativo e gestão público. Florianópolis: CONPEDI, 2022.

[20]  PLOTKOWSKI, Fabio Maciel; IGREJAS, Rafael. A flexibilidade de abandono em concessões de infraestrutura de transporte: um estudo de caso em rodovias no Brasil. Revista do BNDES, v. 29, p. 296-352, 2023.

[21] Além da legislação já citada, a ANTT, no contexto das rodovias federais, emitiu a Resolução ANTT nº 5.860/2019, a qual define a metodologia para calcular os montantes de indenização relacionados aos investimentos associados a bens reversíveis não depreciados ou amortizados. Além disso, a Resolução ANTT nº 5.926/2021 estabelece diretrizes para o encerramento, relicitação e extensão dos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária sob a competência desta agência reguladora. (Ibid., p. 312-313)

[22] JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar. INFRA Debate: Aeroportos – o possível consenso para mudança de rumo. Agência Infra, 17 fev. 2023. Disponível em: https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-aeroportos-o-possivel-consenso-para-mudanca-de-rumo/. Acesso em: 23 nov. 2023.

[23] Ibid.

[24]  LICHMANN, Wesley. Assinado o novo contrato de concessão do aeroporto de São Gonçalo do Amarante. Uol, 13 set. 2023. Disponível em: https://aeromagazine.uol.com.br/artigo/assinado-o-novo-contrato-de-concessao-do-aeroporto-de-sao-goncalo-do-amarante.html. Acesso em: 23 nov. 2023.

[25]  BRASIL. Ministério dos Transportes. Portaria nº 848, de 25 de agosto de 2023. Estabelece a política pública e os procedimentos relativos à readaptação e otimização dos contratos de concessão, no que se refere à exploração da infraestrutura de transporte rodoviário federal. Brasília, 2023a. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-848-de-25-de-agosto-de-2023-505746177. Acesso em: 23 nov. 2023.

[26] Ibid.

[27] BRASIL. Ministério dos Transportes. Portaria nº 848, de 25 de agosto de 2023. Brasília, 2023

[28]  Ibid.

[29]  JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar. INFRA Debate: Aeroportos – o possível consenso para mudança de rumo. Agência Infra, Brasília, DF, 17 fev. 2023

[30]  Ibid.

[31] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1593/2023. Plenário. Relator: Vital do Rêgo. Sessão de 02 ago. 2023. Processo: 008.877/2023-8. Brasília, 2023. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A1593%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0. Acesso em: 23 nov. 2023.

[32]  BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1593/2023. Plenário. Relator: Vital do Rêgo. Sessão de 02 ago. 2023. Processo: 008.877/2023-8.

[33]  Ibid.