Contencioso empresarial

Os desafios da inteligência artificial e a uniformização da jurisprudência

Julia Renault Coelho da Silva Pereira[1]

Roberta Ribeiro Alexandre[2]

Nayra Alice Pereira Silva[3]

INTRODUÇÃO

Com maior desenvolvimento a partir da segunda metade do século XX, a inteligência artificial (IA) já faz parte da vida cotidiana das pessoas. O corretor ortográfico dos smartphones, que completa frases e usa as palavras mais frequentes, é um bom exemplo de IA. Outros exemplos são os aplicativos que calculam as melhores rotas para evitar congestionamentos, as buscas personalizadas na internet, os assistentes virtuais (como a Siri, da Apple e a Alexa, da Amazon), o reconhecimento facial (empregado na confirmação da identidade de uma pessoa ao acessar seus dispositivos pessoais, como smartphones, ou ainda em aplicativos financeiros, como os bancos virtuais), os carros autônomos e os algoritmos de redes sociais, que analisam os padrões da atividade dos indivíduos e personalizam qual tipo de postagem aparecerá para cada um, de acordo com os seus interesses.

Fato é que a evolução tecnológica vivenciada pela humanidade nas últimas décadas vem proporcionando a incorporação cada vez maior da inteligência artificial na vida cotidiana, sendo inúmeros os seus benefícios.

 A relação da inteligência artificial com o Direito tem sido cada vez mais estreita, já que a IA pode auxiliar bastante na análise de documentos legais, pesquisas jurídicas e jurisprudencial, automação de tarefas repetitivas, análise preditiva e até mesmo na assistência jurídica. Por meio de algoritmos sofisticados e aprendizado de máquina, a IA tem o potencial de acelerar e otimizar processos, aumentando a eficiência e a precisão das atividades desenvolvidas pelos profissionais do Direito.

Perpassando pelo conceito de inteligência artificial e discorrendo sobre o funcionamento da inteligência artificial, o presente artigo evidencia o aumento da utilização das ferramentas de inteligência artificial pelos tribunais brasileiros, demonstrando a relevância da ferramenta na tomada de decisões judiciais.

Os projetos e ferramentas criados por alguns tribunais pátrios demonstram como a inteligência artificial, desde que corretamente utilizada, pode contribuir para a atividade judiciária, otimizando-a, e também mitigando divergências e a prolação de decisões conflitantes, imprimido maior celeridade, efetividade e isonomia na tomada de decisões pelo Poder Judiciário.

O presente artigo tem como objetivo principal analisar a relevância da inteligência artificial para a uniformização jurisprudencial brasileira (artigos 926 a 928 do Código de Processo Civil), como forma de poupar tempo, otimizar e aumentar a precisão na busca por precedentes e jurisprudência.

            Por fim, o artigo traz algumas críticas e desafios a serem superados para o melhor aproveitamento e funcionamento ético de tão importante ferramenta tecnológica e apresenta meios para aferir a idoneidade e a segurança jurídica das decisões judiciais proferidas com auxílio da inteligência artificial.

1. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: DADOS E ANÁLISE DE DADOS

Atualmente, a população mundial vive a chamada Quarta Revolução Industrial, na qual o desenvolvimento constante de novas tecnologias transformou a informação no mais cobiçado ativo do mercado.

Dentro deste desenvolvimento, merece atenção a inteligência artificial, normalmente referenciada pela sigla IA ou AI (em inglês, artificial intelligence), uma das tecnologias mais fascinantes da atualidade.

Conceituada por Aires José Rover apud Teixeira[4] como “a ciência do conhecimento que busca a melhor forma de representá-lo, na medida em que estuda o raciocínio e os processos de aprendizagem em máquinas”, em linhas gerais, a inteligência artificial consiste na facilitação do traslado de processos cognitivos eminentemente humanos para máquinas.

            O funcionamento da inteligência artificial, de maneira simplificada, acontece por meio da coleta e da combinação de um grande volume de dados seguidas da identificação de determinados padrões nesse conjunto de informações. Com esse processo, que geralmente se dá mediante a utilização de algoritmos[5] pré-programados, o software consegue tomar decisões e realizar tarefas de maneira autônoma.

E, para tanto, o conhecimento da inteligência artificial é aprimorado por meio dos mecanismos chamados Machine Learning e Deep Learning.

Machine Learning consiste no aprendizado e na evolução do computador quando exposto a dados (Big Data) que orientarão as suas ações com base nas informações coletadas no banco de dados. Rodrigues[6] destaca que essa forma de aprimoramento se diferencia de uma análise de algoritmos simples por ser capaz de “analisar, fazer correlações e buscar padrões a partir de dados não estruturados: fotos, vídeos, textos, dados coletados por smartphones e sensores”.

Deep Learning utiliza algoritmos complexos como forma de aprendizagem, que consiste na avaliação de “estruturas de dados e ações complexas, como reconhecimento de voz e áudio, interpretação de imagens, como no reconhecimento facial, processamento de linguagem natural, entre outros”, conforme citado por Teixeira[7]. Explica Reis[8] que os algoritmos são sistemas lógicos e o seu processo de construção se desenvolve em três etapas: a primeira busca identificar com precisão o problema a ser resolvido e é nessa etapa que o profissional de computação necessita do auxílio do operador do direito para realizar a identificação do caso a ser solucionado; a segunda fase consiste na análise da compreensão dos parâmetros identificados e, por último, a solução é descrita e traduzida para alguma linguagem da programação.

Deste modo, os algoritmos conseguem “coletar e interpretar dados, fazendo predições sobre fenômenos, de forma que as máquinas desenvolvam os próprios modelos e façam predições automáticas”. Assim, um conjunto de dados é analisado e o sistema ajusta as suas variáveis para estruturar os caminhos mais assertivos (resultados desejados), utilizando operações matemáticas.[9]

Citando André Vasconcelos Roque, Gomes e da Cruz Nunes afirmam que:

Isso significa que a informação que a máquina precisa “entra” (input) no sistema e os algoritmos programados identificam as possíveis soluções daquele problema – com dados relacionados aos padrões de fatos de processos judiciais, de documentos, de julgamentos e de precedentes – e o resultado “sai” (output) do sistema, com o objeto desejável (decisão judicial programada).[10]

            A partir de um grande volume de dados, Gomes e da Cruz Nunes, citando Isabela Ferrari e Daniel Becker, esclarecem que:

(…) é possível que o sistema seja alimentado com um objetivo e com várias informações de entrada que serão testadas pelo sistema até encontrar o resultado desejado, ou seja, buscar fornecer a decisão mais assertiva (aquela que receber um peso maior pelas operações matemáticas). Essa estruturação algorítmica necessita de uma supervisão, uma vez que dados fornecidos ao sistema foram inspirados em erros e acertos humanos, com identificação dos caminhos e das decisões mais corretas a serem tomadas.[11]

Portanto, em um primeiro momento, a inteligência artificial está apta a ser utilizada quando presentes dados e algoritmos capazes de analisar dados. Sem tais requisitos, pode-se dizer que não há como ser implantada a inteligência artificial.

Buscando regulamentar e proteger dados, no Brasil entrou em vigor a Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD), que versa sobre a proteção de dados pessoais. Embora não seja o foco deste artigo, o advento da mencionada lei e os debates do projeto de Lei n° 2.338/2023, que, em trâmite, dispõem sobre o uso da inteligência artificial, evidenciam como o tema vem sendo considerado relevante no Brasil e qual o papel do Direito na evolução tecnológica.

Assim, conforme observado por Werner e Engelmann[12], “(…) cabe ao Direito estudar quais serão os impactos nas diversas carreiras jurídicas, buscando antecipar cenários e projetar estruturas normativas flexíveis capazes de acompanhar a evolução tecnológica, com o devido suporte regulatório”.

Ao mesmo tempo em que compete ao Direito a regulação da utilização da inteligência artificial, é fato que ele é também afetado pelo crescente desenvolvimento de sistemas que justamente pretendem otimizar o trabalho de servidores da justiça, tais como julgadores e advogados, conforme será adiante tratado.

Desta forma, compete destacar que não apenas cabe ao Direito a busca pela regulação da inteligência artificial em um cenário macro, como também dentro da própria esfera jurídica. Afinal, a tendência é que os próprios profissionais do Direito se valham, cada vez mais, de ferramentas e plataformas de inteligência artificial para o desempenho de suas atividades profissionais, na esteira da Quarta Revolução Industrial. 

2. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO FERRAMENTA DO JULGADOR

            Se, por um lado, a utilização da Inteligência Artificial pelos profissionais do Direito levanta questionamentos quanto à necessidade de proteção dos direitos de quem pretende interagir com esta tecnologia, como salientado por Werner e Engelmann[13], ela também levanta questionamentos sobre o temor de que o intelecto humano seja desafiado e substituído pela inteligência artificial.

A despeito desses questionamentos, ela é abraçada pelo mundo jurídico como uma ferramenta capaz de reduzir o tempo gasto na elaboração e correção de petições e realização de pesquisas, assim como na análise, pelos Tribunais, de recursos, principalmente quando se está diante de julgamento de demandas repetitivas.  Nesta perspectiva, assinalam Werner e Engelmann:

O sistema complexo que representa o algoritmo viabiliza a inteligência artificial por meio do armazenamento de dados e, a partir deles, consegue estruturar séries de dados, que no Direito geram a jurimetria, como uma ferramenta poderosa para se ter uma ideia do modo como decidem determinado tribunal, a partir de dados coletados por um longo período, que são tratados, estruturados e sistematizados, permitindo-se detectar tendências no sentido de julgamentos e temas escolhidos. A partir daí se pode referir que existe certa superioridade da máquina – do sistema – em relação ao ser humano.[14]

Considerando a aplicabilidade da inteligência artificial na prática, o Supremo Tribunal Federal (STF) implementou, em 2018, o Projeto Victor, um robô que utiliza IA para converter imagens de texto no processo digital, separar decisões, classificar as peças processuais mais utilizadas nas atividades da Corte Suprema e identificar os temas de repercussão geral de maior incidência. 

Conforme explicação disponível no próprio site do Supremo Tribunal Federal, o robô é voltado para “apoiar a atividade de análise de admissibilidade recursal, mediante sinalização de que um dado tema de repercussão geral, ou mais de um, se aplica ao caso dos autos. Trata-se, portanto, de um indicativo que sempre é validado ou confirmado durante a efetiva apreciação do caso concreto pelos ministros”[15].

Recentemente, o STF anunciou[16] o lançamento de mais uma plataforma de inteligência artificial: VitórIA. A Corte Suprema buscará, por meio dela, a ampliação do conhecimento sobre os processos lá recebidos, agrupando automaticamente aqueles processos que tratem sobre o mesmo assunto para que sejam julgados em conjunto ou para que, ainda, resultem em novos temas de repercussão geral.

Vê-se, desta forma, que, a princípio, a informação, lançada no sistema daquela Corte, será traduzida em dados e os algoritmos capazes de analisar dados poderão propiciar (a tão almejada) celeridade ímpar no julgamento de demandas no âmbito do STF. No entanto, indaga-se:será possível atribuir credibilidade às decisões proferidas por meio de análises exclusivas de robôs?

Já na seara dos Tribunais de Justiça, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), por exemplo, busca utilizar uma ferramenta de IA, ainda em fase de testes, que é baseada no Chat GPT. Apelidada de Sistema Assistente Virtual de Inteligência Artificial (SAVIA), a ferramenta tem como objetivo auxiliar no desenvolvimento de atividades administrativas do tribunal, especificamente nos departamentos que produzem textos de forma repetitiva, buscando deixar o trabalho mais eficiente. Desta forma, ela deve ser usada futuramente para ajudar na redação de e-mails, portarias, resoluções, relatórios e textos em geral, cabendo ao usuário realizar as correções que julgar pertinentes[17].

A tecnologia do Chat GPT, por sua vez, é definida como um modelo de linguagem treinado pela OpenAI (laboratório estadunidense de pesquisa de inteligência artificial) e foi projetada para responder a perguntas e realizar tarefas de conversação[18].

Entretanto, o Chat GPT tem sido alvo de críticas, principalmente quando utilizado no meio acadêmico e jurídico. Ferreira, Garcia e Brasil expõem que a ferramenta possui potencial de promover desinformação “criando e repetindo de forma muito convincente teorias conspiratórias e narrativas enganosas”, levando o autor da pesquisa a acreditar nas informações apresentadas.

De início, podem ser apontados os problemas de confiabilidade nas ferramentas de IA generativa. No caso do ChatGPT, como a própria empresa destaca em sua página, a ferramenta pode apresentar respostas incorretas, falsas ou imprecisas, apesar de construções semânticas aparentemente corretas — é o caso das chamadas “alucinações” (hallucinations), isto é, percepções irreais que parecem reais, como ocorrido na lista de precedentes utilizada pelo advogado estadunidense.

Isso porque a qualidade do output depende de vários fatores, dentre eles o conjunto de dados em que se baseia, os inputs do usuário e outros aspectos envolvendo os métodos de treinamento. Assim, as alucinações podem ser fruto tanto da insuficiência dos dados de treinamento, especialmente em ramos muito especializados, como o jurídico, quanto da qualidade dos comandos fornecidos pelo usuário.

No mesmo sentido, considerando a grande quantidade e diversidade dos dados de treinamento, o design e o desenvolvimento dos chatbots podem resultar em ferramentas que absorvam diferentes vieses, que podem incluir questões culturais e linguísticas, raciais e de gênero, vieses cognitivos, vieses de confirmação, dentre outros, com riscos de reforço de estereótipos e preconceitos já presentes na sociedade. Esse tópico é especialmente relevante em áreas sensíveis, como a do direito, que tem o condão de tomar decisões que afetam diretamente a vida das pessoas envolvidas.[19]

Como exposto por Campos e Badaró[20], a ferramenta possui incongruências, uma vez que depende das informações que são inseridas na sua base de dados. Não muito distante do Brasil, na Colômbia foi proferida sentença em processo que envolve o direito à saúde de uma criança autista com auxílio do Chat GPT. Na própria sentença foram apresentadas e detalhadas as perguntas feitas ao Chat GPT e as respostas dele obtidas.

No caso colombiano, um professor discordou da atitude do Juiz afirmando que ele próprio formulou as mesmas perguntas ao Chat GPT e alcançou respostas distintas[21], o que culminou em sentença diferente daquela proferida, evidenciando o risco do uso da ferramenta.

No contexto da inovação tecnológica aplicada ao Direito, o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicou, em junho de 2023, a 3ª Edição da pesquisa sobre a inteligência artificial nos tribunais brasileiros: Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da Inteligência Artificial.

Por meio da aludida pesquisa, a FGV identificou o uso de inteligência artificial em 44 (quarenta e quatro) Tribunais do país, além do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, por sua vez, conta com recomendações propositivas de implementação da IA. O próprio CNJ dispõe da Resolução n° 332 de 2020, que trata sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de inteligência artificial no Poder Judiciário.

É visível, portanto, o avanço e a crescente implementação da aplicação da inteligência artificial no Poder Judiciário. No entanto, quando se trata de prolação de decisões, tal como na Estônia, em que Juiz Robô é utilizado para decidir disputas de baixa complexidade ou de pequeno valor econômico, de até 7 (sete) mil euros[22], indaga-se: como garantir a idoneidade da decisão?

3. INFLUÊNCIA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

Antes de responder a indagação acima, vale a pena relembrar que, no Código de Processo Civil Brasileiro, mecanismos processuais, tais como os incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, foram criados para imprimir segurança jurídica ao tornar o sistema processual efetivamente estável, previsível e eficiente[23]. Segundo Marinoni[24], a “segurança jurídica, vista como estabilidade e continuidade da ordem jurídica e previsibilidade das consequências jurídicas de determinada conduta, é indispensável para a conformação de um Estado que pretenda ser Estado de Direito”.

 Todavia, mesmo com a criação de tais mecanismos, a prática jurídica ainda revela decisões conflitantes para casos semelhantes e divergências internas (entre câmaras, turmas e seções) no âmbito do Poder Judiciário, apesar do quanto estabelecido no art. 926 do Código de Processo Civil de 2015.

 Neste contexto, a inteligência artificial pode representar solução para o apaziguamento de divergências e decisões conflitantes e imprimir maior celeridade, efetividade e isonomia na tomada de decisões pelo Poder Judiciário.

A Constituição da República, no seu art. 93, inciso IX, erige o Princípio Constitucional da Motivação das Decisões, segundo o qual é dever do julgador fundamentar as suas decisões de forma a trazer segurança ao devido processo legal. Ademais, o art. 11 do Código de Processo Civil de 2015 é cristalino ao dispor que todos os atos decisórios emanados do Poder Judiciário serão públicos e fundamentados, sob pena de nulidade. No mesmo sentido é o art. 489 do mesmo diploma processual, segundo o qual toda e qualquer decisão deve ser fundamentada. 

Portanto, independentemente das ferramentas tecnológicas atualmente utilizadas ou que venham a ser utilizadas no futuro pelos tribunais pátrios, a construção da decisão judicial deve seguir os mesmos elementos da decisão proferida por um julgador humano. Isto é, as decisões devem ser motivadas com base em fundamentos fáticos e jurídicos que efetivamente relacionem se ao caso em análise, sob pena de serem proferidas decisões genéricas e totalmente alheias ao contexto fático e jurídico da lide. 

Certamente que a prolação de decisões genéricas e desconexas implicarão resultado distinto daquele esperado pela utilização da inteligência artificial: aumento da instabilidade jurídica, falta de eficiência e celeridade na tramitação dos processos judiciais diante dos incontáveis recursos que certamente serão interpostos para a reforma de tais decisões.

Isto significa que, independentemente do grau de aperfeiçoamento do sistema de inteligência artificial utilizado pelos tribunais brasileiros, a sua eficácia será definida pela assertividade na apreciação dos fatos, provas e argumentos contidos nos autos, com base nos quais deverá motivar a sua decisão, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da motivação das decisões.

 Assim é que, tal como assevera Roque:

O maior risco, sob a perspectiva das garantias fundamentais do processo, reside na possibilidade de se implementar a inteligência artificial para a tomada de decisões de forma totalmente automatizada, o que parece ser um caminho natural do desenvolvimento do machine learning – aprendizado de máquina, sem a interferência humana, por meio da experiência obtida em função dos parâmetros já alcançados anteriormente. Afinal, seguindo essa lógica utilitarista, de pouco adiantaria a aceleração da marcha procedimental, por meio da execução automatizada dos atos processuais repetitivos e de menor complexidade, se, ao final, os processos ficassem represados nos gabinetes dos julgadores para a tomada de decisões – ainda que seja para acolher o padrão decisório sugerido pelos algoritmos.[25]

Portanto, como a inteligência artificial poderia contribuir para a tão almejada minimização de decisões judiciais conflitantes? 

A resposta é, como visto, a utilização de procedimentos de aprendizagem da máquina por meio de interpretações humanas por meio de algoritmos. Segundo Gomes e Cruz Nunes[26] “o emprego de mecanismo da inteligência artificial no processo de tomada de decisões tem fundamento na estruturação lógica dos algoritmos que, por meio do aprendizado, consegue caracterizar a solução do problema”.

Contudo, ainda que seja possível a prolação de uma decisão programada, Rodrigues alerta que, no momento decisório, deve ser considerado o que foi construído pelas partes ao longo do procedimento, em respeito aos princípios do contraditório e da cooperação entre as partes.

Ocorre que a fase final da relação processual, ou seja, o momento de prolação da decisão judicial, efetivamente não pode ignorar aquilo que foi construído por todos os atores, no curso de todo um procedimento dialético. Em termos: a decisão judicial não é um simples output estacionário na saída da marcha processual. A decisão é construída a várias mãos, no curso de todo o procedimento, sendo representativa de persuasão racional consoante o contraditório verificado desde o início da demanda, observando-se que as partes “devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (art. 6º do CPC) (BRASIL, 2015b), e que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar” (art. 10º do CPC) (BRASIL, 2015b). O juiz deve decidir “o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte” (art. 141 do CPC) (BRASIL, 2015). Enfim, ao juiz não compete simplesmente identificar e explicar aquilo que se pretende impor como melhor padrão de decisão, mas, sim, correger, com as partes, a construção da solução mais justa, no curso de toda a marcha processual.[27]

Deste modo, caso o processo se limitasse apenas à entrada e saída de informações, ainda que tal método garantisse a segurança jurídica, não significa que estaria de acordo com as questões éticas e os padrões sociais, conforme pontua o mesmo autor.

(…) Portanto, se a jurisprudência deve assumir influência, no processo de reconstrução do ethos, esta deveria ocorrer, primeiramente, no seio da sociedade política, enquanto subsídio ao debate político. Somente respeitando essa passagem é que se estimularia a práxis ética social. O caminho inverso adotado por um software de IA, que promova mineração de bancos de dados de jurisprudência, compromissado estritamente com um princípio de segurança jurídica formal (estabilidade de um padrão de decisão), e não com a missão propriamente hermenêutica, conduziria a um progressivo distanciamento dos tribunais em relação à tradição e aos valores sociais – e, portanto, à verdadeira subordinação da técnica processual à ética. Os juízes são obrigados a decidir de acordo com normas constituídas a partir de um compromisso intersubjetivo firmado em comunidade, pelo que apenas na preservação da intersubjetividade (e não da mera objetividade), no momento de aplicação dessa norma, é que esse compromisso institucional se preservará.

Portanto, a inteligência artificial é, de fato, promissora na uniformização da jurisprudência. Contudo, se as decisões podem ser tomadas de forma automatizadas, como proporcionar meios para se aferir a idoneidade e a segurança jurídica de tais decisões?

Além da supervisão, mencionada no excerto acima colacionado, ou melhor dizendo, revisão humana, Roque acrescenta que são requisitos para a utilização da inteligência artificial na tomada de decisões judiciais: (i) a indicação na própria decisão de que ela foi tomada com o auxílio da inteligência artificial, de forma a privilegiar o princípio da publicidade esculpido nos arts. 5º, LX e 93, IX da CR/88 e art. 8º do Código de Processo Civil; (ii) a apreciação de Embargos de Declaração opostos contra decisões proferidas com auxílio da inteligência artificial pelo juiz da causa, sem a utilização de mecanismos de formulação automatizada de decisões, sob pena de nulidade. 

Fato é que o Poder Judiciário carece, atualmente, de normas sobre a regulamentação do uso da inteligência artificial na tomada de decisões. Como dito anteriormente, não apenas compete ao Direito a busca pela regulação da inteligência artificial em um cenário macro, como também, dentro da própria esfera judicial.

Ora, de modo a garantir o devido processo legal, a segurança jurídica a ele inerente e o apaziguamento social, a uniformização de jurisprudência aqui tratada depende efetivamente da criação de regulamentações sobre o uso da inteligência artificial na prolação de decisões judiciais.

CONCLUSÃO

São inegáveis os inúmeros benefícios da inteligência artificial (IA) para o mundo jurídico, especialmente no tocante à uniformização jurisprudencial brasileira (prevista nos artigos 926 a 928 do Código de Processo Civil), na medida em que otimiza e aumenta a precisão na busca por precedentes e jurisprudência, facilitando o trabalho do operador do Direito e contribuindo para a redução de decisões díspares.

Por outro lado, há inúmeros desafios a serem enfrentados e superados por aqueles que se utilizam da IA, no ramo do direito, especialmente o Poder Judiciário, já que as decisões não devem ser tomadas de forma integralmente automatizada, sob pena de causar insegurança jurídica, violação aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, fazendo com que cresça o número de recursos contra tais decisões, emperrando ainda mais o Judiciário.

Com efeito, a adoção de mecanismos, tais como (i) revisão humana das decisões, (ii) indicação na própria decisão de que ela foi proferida com o auxílio da inteligência artificial e (iii) a apreciação de Embargos de Declaração opostos contra decisões proferidas por IA pelo juiz da causa, poderá minimizar os efeitos negativos de decisões proferidas com uso de inteligência artificial e maximizar os objetivos positivos que se buscam com a sua utilização pelo Judiciário.


[1] Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos.

[2] Graduada em Direito pela Universidade de Itaúna.

[3] Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

[4] ROVER, 2001 apud TEIXEIRA, Tarcísio. Direito Digital e Processo Eletrônico. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 255.

[5] Sequência de instruções ou comandos realizados de maneira sistemática com o objetivo de resolver um problema ou executar uma tarefa.

[6] RODRIGUES, Bruno Alves. A inteligência artificial no poder judiciário: e a convergência com a consciência humana para a efetividade da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. pos. RB-4.2.

[7] TEIXEIRA, Tarcísio. Direito Digital e Processo Eletrônico. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 256-257.

[8] REIS, Paulo Victor Alfeo. Algoritmos e o Direito. Portugal: Almedina, 2020. p. 21.

[9] FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel. Direito à explicação e decisões automatizadas: reflexões sobre o princípio do contraditório. In: NUNES, Dierle et al. Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: JusPodium, 2020. p. 281-282.

[10] GOMES, Luísa Caroline; CRUZ NUNES, Thâmylla. Decisões judiciais conflitantes e o impacto da inteligência artificial na uniformização da jurisprudência. Revista de Direito e Atualidades, v. 1, n. 3, 2022. p. 12-13. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/rda/article/view/6232. Acesso em: 23 ago. 2023.

[11] Ibid, p. 13.

[12] ENGELMANN, Wilson; WERNER, Deivid Augusto. Inteligência artificial e direito. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin. (Coords.). Inteligência Artificial e Direito: Ética, Regulação e Responsabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. pos. RB-7.3.

[13] Ibid, RB-7.1.

[14] Ibid, RB-7.1.

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Projeto Victor avança em pesquisa e desenvolvimento para identificação dos temas de repercussão geral. STF, 19 ago. 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=471331&ori=1. Acesso em: 10 nov. 2023.

[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF finaliza testes de nova ferramenta de Inteligência Artificial. STF, 11 maio 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=507120&ori=1. Acesso em: 10 nov. 2023.

[17] ROCHA, Johnny. Chat GPT: uso de ferramenta de inteligência artificial é analisada por TJMG. Jota, 8 fev. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/justica/chat-gpt-tjmg-estuda-uso-de-ferramenta-de-inteligencia-artificial-08022023. Acesso em: 10 nov. 2023.

[18] MELLO, Victor Habib Lantyer de. Chat GPT na advocacia. Migalhas, 5 maio 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/385996/chat-gpt-na-advocacia. Acesso em: 10 nov. 2023.

[19] FERREIRA, Rafael C. V.; GARCIA, Gustavo Henrique Maia; BRASIL, Deilton Ribeiro. O surgimento do Chat GTP e a insegurança sobre o futuro dos trabalhos acadêmicos. Cadernos de Dereito Actual, n. 21. p. 136. Disponível em: https://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/917/490. Acesso em: 10 nov. 2023.

[20] CAMPOS, Ricardo; BADARÓ, Rodrigo. Considerações sobre o uso de IAs generativas no setor público. Consultor Jurídico, 21 jun. 2023. Disponível: em  https://www.conjur.com.br/2023-jun-21/campos-badaro-uso-ias-generativas-setor-publico. Acesso em: 10 nov. 2023.

[21] UOL. Juiz usa ChatGPT para proferir decisão em julgamento na Colômbia. UOL, 3 fev. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/02/03/juiz-usa-chatgpt-para-proferir-decisao-em-julgamento-na-colombia.htm. Acesso em: 10 nov. 2023.

[22] FERRO, Salus Henrique Silveira Ferreira. Permissibilidade do juiz robô no sistema jurídico brasileiro. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 7, n. 6, 2021. p. 2066. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2021/6/2021_06_2059_2080.pdf. Acesso em: 10 nov. 2023.

[23] GOMES; CRUZ NUNES, 2022.

[24] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 6. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2019. p. 92.

[25] ROQUE, André Vasconcelos. Inteligência Artificial na tomada de decisões judiciais: três premissas básicas. Revista Eletrônica de Direito Processual REDP, v. 22, n. 1, 2021. p. 66. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/53537. Acesso em: 10 nov. 2023.

[26] GOMES; CRUZ NUNES, 2022.

[27] RODRIGUES, 2021. pos. RB-4.2.