A MP 881/19 e os impactos de sua Declaração de Direitos de Liberdade Econômica

A chamada Medida Provisória da Liberdade Econômica (“Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019” ou “MP 881/19”) foi editada com o propósito de instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelecer garantias relacionadas ao livre mercado e à livre iniciativa.

Sem dúvida, trata-se de iniciativa que visa promover o livre funcionamento e o desenvolvimento do mercado no Brasil. Em um contexto de elevado nível de desemprego, estagnação econômica e excessiva dependência da atuação de um Estado esgotado financeiramente, espera-se que ela contribua com a recuperação da saúde financeira e a retomada do crescimento socioeconômico do País.

A MP 881/19 propõe o reforço de três pilares essenciais previstos na Constituição Federal – especialmente em seus artigos 1º, 5º e 170 – que andavam preteridos nos últimos anos: (i) a livre iniciativa (e a concorrência); (ii) a autonomia privada (a liberdade de contratar); e (iii) a propriedade. 

A mensagem que acompanha a MP 881/19 apresenta uma relação – quase explícita – entre liberdade econômica e desenvolvimento social.

O Brasil atualmente figura na 150º posição no ranking de Liberdade Econômica da Heritage Foundation/Wall Street Journal, na 144º posição do ranking de Liberdade Econômica do Fraser Institute e na 123º posição no ranking de Liberdade Econômica e Pessoal do CatoInstitute. Ao mesmo tempo, possui baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Por sua vez, países que possuem melhor posicionamento em ranking de liberdade econômica tendem a estar bem posicionados nos rankings que avaliam o IDH. Como exemplo, cita-se o Chile, que possui maior índice de liberdade econômica da América Latina e também o maior Índice de Desenvolvimento Humano entre os vizinhos, a ponto de já ser conhecido como o primeiro país desenvolvido da região.

Já no Capítulo Primeiro a MP 881/19 apresenta uma visão geral do que pretende promover: (i) institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; (ii) estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica; e (iii) direciona a atuação do Estado às funções de agente normativo e regulador, com fundamento nos artigos 170 e 174 da Constituição Federal. Além disso, prevê que será de observância obrigatória na aplicação e na interpretação de Direito Civil, Empresarial, Econômico, Urbanístico e do Trabalho.

Estabelece, ainda, os princípios que a norteia: (i) presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas; (ii) presunção de boa-fé do particular; e (iii) intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado no exercício das atividades econômicas.

Os dispositivos iniciais da MP 881/19 (artigos 1º ao 4 º) são por ela identificados como norma geral de Direito Econômico, devendo ser observados para todos os atos públicos de liberação da atividade econômica, ressalvadas as exceções previstas na MP.

No Capítulo Segundo, que trata especificamente da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (artigo 3º), a MP 881/19 estabelece rol de direitos, aplicáveis a toda pessoa, natural ou jurídica, considerados essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômico do País. Em síntese, o referido artigo 3º dispõe, entre outros, sobre:

(i)         o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco sem a necessidade de atos públicos de liberação (licenças, alvarás, etc);

(ii)        o desenvolvimento de atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana;

(iii)       a liberdade de definir preço de produtos e de serviços;

(iv)       o tratamento isonômico de órgãos da administração pública quanto ao exercício de atos de liberação de atividade econômica, devendo ser aplicados os mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores;

(v)       a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica e a preservação da autonomia da vontade;

(vi)       o direito de desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos ou serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força da tecnologia (direito de inovar);

(vii)      o direito de implementar, testar, oferecer um novo produto ou serviço para um grupo privado de restrito de pessoas maiores e capazes sem requerimento ou ato público de liberação da atividade econômica (direito de testar e desenvolver produtos e serviços);

(viii)     os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes de forma a aplicar o Direito Empresarial apenas de maneira subsidiária ao contratado. Além disso, nenhuma norma de ordem pública poderá ser usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela;

(ix)       o direito de aprovação tácita de solicitações por órgãos públicos quando não apreciada dentro do prazo estipulado. O ente público deverá informar expressamente ao particular tempo máximo para análise da solicitação;

(x)       o direito de arquivamento de documentos por meio de microfilme ou meio digital.

No Capítulo Terceiro (garantias de livre iniciativa), a MP 881/19 estabelece que é dever da administração pública evitar o abuso do poder regulatório, exceto quando em estrito cumprimento de lei. Como exemplos de situações que podem caracterizar abuso de poder regulatório se não estiverem em estrito cumprimento de lei: (i) a criação de reserva de mercado; (ii) a redação de enunciados que impeçam a entrada de novos competidores; (iii) a criação de privilégio exclusivo para determinado segmento econômico; (iv) a exigência de especificação técnica que não seja necessária para atingir fim desejado; (v) a redação de enunciados que impeçam ou retardem a inovação ou a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócio; (vi) o aumento de custos de transação sem demonstração de benefícios; (vii) a criação de demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional; e (viii) a introdução de limites à livre formação de sociedades empresárias ou de atividades econômicas.

A MP 881/19 também disciplina a análise de impacto regulatório, que é um instrumento de avaliação de custos, benefícios, dificuldades e efeitos esperados de uma nova regulação, reduzindo a margem de discricionariedade do regulador. Busca melhorar a qualidade da regulação, equilibrando custos de transação com a eficiência e a eficácia almejadas.

No Capítulo Quinto, a MP 881/19 estipula propostas de alteração e inclusão de diversas normas no ordenamento jurídico, que serão analisadas a seguir.

A MP 881/19 alterou e acrescentou os seguintes artigos ao Código Civil:

(i)         Artigo 50. Este artigo trata da desconsideração da personalidade jurídica. Os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica serão estendidos apenas aos sócios e/ou administradores que se beneficiaram direta ou indiretamente pelo abuso da personalidade jurídica, evitando, assim, lesão a sócios e/ou administradores que não participaram da fraude. Os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial foram definidos. Entende-se por desvio de finalidade a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e/ou para a prática de atos ilícitos. Já a confusão patrimonial é a ausência de autonomia patrimonial entre o patrimônio pessoal do sócio e/ou administrador e o da sociedade, como nas hipóteses de cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócios e/ou administrador ou transferência de ativos ou passivos sem efetivas contraprestações. Por fim, a mera existência de grupo econômico sem a presença de desvio de finalidade ou confusão patrimonial não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica;

(ii)        Artigo 421. A MP 881/19 introduziu o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações contratuais privadas, de forma a evitar que a função social do contrato seja interpretada e aplicada para prejudicar a autonomia privada e promover o intervencionismo estatal (dirigismo contratual).

(iii)       Artigo 423. As cláusulas dos contratos de adesão que gerem dúvida quanto à sua interpretação deverão ser interpretadas de forma favorável ao aderente. Além disso, a dúvida na interpretação do contrato deverá beneficiar a parte que não redigiu a cláusula controvertida.

(iv)       Artigos 480-A e 480-B. O 480-A prevê que, nas relações interempresariais, é lícito aos contratantes estabelecer parâmetros para interpretação de requisitos de revisão ou resolução contratual e, o art. 480-B, dispõe que em tais relações presumir-se-á a existência de simetria entre os contratantes.

(v)       Artigo 980. A MP 881/19 reforçou a limitação da responsabilidade do titular da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada-EIRELI, estabelecendo, expressamente, a separação entre os patrimônios do titular e da EIRELI.

(vi)       Artigo 1.052. A MP 881/19 criou a sociedade limitada com um único titular, pessoa física ou jurídica. A responsabilidade do titular também será limitada (segregação entre os patrimônios do titular e da sociedade). Diferentemente da EIRELI, cujo capital social deve ser de, no mínimo, 100 salários-mínimos, a sociedade limitada com um único titular poderá ter capital social de qualquer valor, mesmo que inferior a 100 salários-mínimos. Espera-se que a sociedade limitada com titular único estimule o empreendedorismo, na medida em que elimina a exigência (i) de capital mínimo para a constituição de entidade com limitação de responsabilidade do titular, e (ii) de ingresso de sócio com participação ínfima, que usualmente compõe o quadro societário apenas para cumprir exigência legal – existência de pelo menos dois sócios.

(vii)      Artigos 1.368-C a 1.368-E. A MP 881/19 regulamentou o fundo de investimento, que é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros. Permite-se a constituição de fundo de investimento com limitação da responsabilidade de cada condômino ao valor de suas cotas. A responsabilidade dos prestados de serviços fiduciários ao fundo de investimento também poderá ser limitada, entre si e perante o condomínio.

A MP 881/19 acrescentou o artigo 82-A à Lei de Falências e Recuperação Judicial para esclarecer que a extensão dos efeitos da falência aos sócios e/ou administradores somente poderá ocorrer na hipótese de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, nos termos do artigo 50 do Código Civil.

Na Lei de Sociedade por Ações, a MP 881/19 autorizou a subscrição de ações por carta e dispensou a assinatura de lista ou boletim de subscrição nas ofertas públicas, bem como autorizou a Comissão de Valores Mobiliários-CVM a dispensar exigências previstas na Lei nº 6.404/76 para as companhias de pequeno e médio portes, com o intuito de facilitar o acesso ao mercado de capitais.

A MP 881/19 alterou a Lei 11.598/07, que dispõe sobre o registro e a legalização de empresas e negócios, para determinar que ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco, as quais poderão ser desenvolvidas sem a necessidade de atos públicos de liberação (licenças, alvarás, etc).

A Lei 12.682/12, que dispõe sobre a elaboração e arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, foi alterada pela MP 881/19 para permitir o armazenamento de documentos (dados ou imagens) privados em meios eletrônicos, ópticos ou equivalentes, os quais terão o mesmo valor probatório dos documentos originais, para todos os fins de direito. Na mesma linha, a MP 881/19 modificou a Lei de Registros Públicos para autorizar a escrituração, publicação e conservação em meio eletrônico dos registros de pessoas naturais e jurídicas, de títulos e documentos e de imóveis.

Por fim, a MP 881/19 revogou:

(i)         a Lei Delegada 4/62, que dispunha sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo;

(ii)        dispositivos do Decreto-Lei 73/66, que regula o Sistema Nacional de Seguros Privados, para eliminar o princípio da reciprocidade em operações de seguro, que impunha às companhias seguradoras estrangeiras as mesmas vedações e restrições às que estavam sujeitas as companhias seguradoras brasileiras no país de origem das estrangeiras;

(iii)       a Lei 11.887/08, extinguindo-se, assim, o Fundo Soberano do Brasil-FSB.

A MP 881/19 entrou em vigor no dia 30 de abril de 2019.