Artigo originalmente publicado no Broadcast Energia do Estadão.
Com a contínua e crescente inserção de renováveis em nossa matriz elétrica, muito se tem discutido sobre a necessidade de desenvolver alternativas para fazer frente à intermitência que é característica própria de fontes como a solar e a eólica. É nesse cenário que se insere o debate sobre o processo de geração de hidrogênio na forma limpa (o tão invocado H2 verde), suas vantagens tanto como energia e combustível, os custos associados e também os desafios ainda a superar.
Para agregar ao debate, ainda que de modo pontual, dada a limitação do presente espaço, propomos uma reflexão a partir de um outro questionamento: como o H2 pode contribuir diante da urgência por uma transição energética efetiva e a descarbonização dos mais variados setores produtivos.
Sabemos que os processos mencionados acima não são do dia para noite – afinal “Rome wasn`t build in a day” – mas talvez devêssemos acelerar a superação dos desafios envolvidos sobretudo porque podemos estar diante de mais do que uma oportunidade sustentável de geração de energia, mas de uma forma disruptiva da perspectiva centralizada com que sempre concebemos a atividade de gerar energia.
Isto porque, para além de todos os seus atributos, além da própria finalidade de descarbonização e transição energética, o hidrogênio verde pode ainda contribuir para o que chamamos de descentralização energética – isto é, para a evolução de um sistema centralizado de geração para um modelo descentralizado, com mais oportunidades de negócios e menor insegurança de suprimento, aspectos ainda mais essenciais em anos de crise.
Institucional e legalmente (sobretudo se verificarmos as mudanças elencadas no projeto de Modernização do Setor Elétrico conduzido com muito afinco e técnica pelo Ministério das Minas e Energia – MME) a geração descentralizada já é protagonista de muitas mudanças, seja por se situar mais próxima do consumo do que o modelo tradicional, centralizado, seja por ser realizada a partir de variadas fontes renováveis: o que contribui para uma maior diversificação da matriz, menor dependência de uma ou outra fonte exclusiva.
Contudo, o paradigma de descentralização de energia possui como importante desafio a intermitência das fontes, que exige maior complexidade da gestão do suprimento de energia elétrica. É exatamente neste ponto que o hidrogênio verde, mais do que apenas a bola da vez na discussão energética, pode e deve se consolidar no planejamento energético nacional, na medida em que possui a capacidade de armazenamento e assim garante o suprimento de energia mesmo nos momentos de oscilação da geração, de modo a complementar e/ou otimizar a contribuição das fontes renováveis, além de aliviar a rede de distribuição em momentos críticos.
Diante de tantos benefícios, incluindo a disruptiva mudança (para melhor) da forma como concebemos geração de energia, é hora de juntarmos esforços para superação dos desafios que ainda travam a exploração do H2 que, em nossa opinião, começam necessariamente pela sua incorporação nas políticas energéticas e diretrizes políticas que depois se tornam regulatórias: definição de metas para o desenvolvimento do mercado e sua integração com a infraestrutura elétrica e de gás natural existentes¹.
Se as maravilhas do H2 são um consenso e estão em linha com a pauta urgente de descarbonização e transição energética (que deve ser a prioridade e será um desafio em ano pós pandemia e recuperação econômica), cabe então não só destravar mas acelerar essa oportunidade através de políticas públicas e, posteriormente, mecanismos regulatórios claros e objetivos de uma tecnologia que já está, como se disse, em consonância com o irreversível movimento de descentralização energética.
Importante aqui se dizer que o processo exige o avançar gradual pelo que denominamos ser o arco-íris do hidrogênio, que de cinza deve avançar ao azul e deste para o turquesa e assim chegar ao verde. Um processo que já se pode chamar de realidade em curso. Veja-se, como exemplo, o projeto de hidrogênio azul recentemente anunciado pela bp (https://www.bp.com/), o Teesside Project.
Por fim, ousamos também dizer (como food for thought) que o desenvolvimento do H2 e a sua incorporação em uma matriz energética efetivamente diversificada e uma geração descentralizada, sofisticada e com interações entre os players das mais diversas naturezas, exige também um repensar da regulação tradicional no sentido de também se abraçar uma regulação descentralizada e disruptiva, a qual admiramos há tempos, por meio das lições da Prof. Julia Black².
¹IEA [International Energy Agency]. The future of Hydrogen – Seizing today’s opportunities. Disponível em: https://www.iea.org/reports/the-future-of-hydrogen.
²Black, Julia. (2001). Decentring Regulation: Understanding the Role of Regulation and Self-Regulation in a ‘Post-Regulatory’ World. Current Legal Problems. 54. 10.1093/clp/54.1.103.